segunda-feira, 22 de outubro de 2012

As Sete Respostas de Shiva - Parte III


Manish era um bebê muito inteligente.

 

Aprendeu a andar rápido e com um ano de idade já falava várias palavras.

Ele adorava andar pela loja dos pais, mas tinha um detalhe que não escapava aos olhos de ninguém.

 

Manish detestava ficar vestido. Ele gostava de ficar nu. Como seus pais achavam isso normal, quase sempre o bebê estava sem roupa. Muitos clientes achavam aquilo um absurdo.

 

Um dia, uma mulher olhou o menino nu e disse a Sitara:

 - Sitara, é uma vergonha seu filho andar nu pela loja... Porque você e seu marido não o vestem?

 

Sitara respondeu sorrindo:

- A nudez de meu filho é menos pecaminosa que os pensamentos que saem da cabeça coberta por um belo véu da senhora. Meu filho anda nu de roupas, já a senhora, anda coberta de preconceitos. Retire seus preconceitos e então vestirei meu filho...

 

A mulher abaixou a cabeça e saiu da loja...

 

Ravi vendo isso falou:

- Sitara, é melhor vestirmos nosso filho, pois isso pode gerar brigas. Não queremos que nosso filho tenha de passar por situações ruins. Infelizmente, minha esposa amada, o mundo é movido á bobagens como as que ouvimos dessa mulher.

Para o bem de Manish, vamos vesti-lo!

 

Sitara, apesar de não gostar de ter de obrigar o filho a se vestir, entendeu que seu marido só queria preservá-lo e concordou com sua decisão. Conforme Manish crescia, Ravi e Sitara lhe ensinavam sobre os Devas e o grande amor que os mesmos tinham pela humanidade.

 

Manish, desde muito cedo, mostrava que seria Shivaísta.

Não que seus pais o obrigassem, mas porque ele mesmo sentia Shiva como seu mestre e amigo.

 

Todos os dias ele cantava mantras a Shiva e agradecia ao Maha Deva pela vida. .

 

O tempo passava e Ravi estava ficando velho e fraco, não podendo trabalhar tanto.

Ás vezes ele ficava em casa e Sitara sozinha cuidava da loja, embora isso também estivesse ficando pesado para ela. Manish, que já estava com seus oito anos, começou a ajudar os país e rápido eles notaram que ele tinha muito talento para o comércio.

Mesmo com sua pouca idade ele falava para os pais sobre mudanças que dariam mais lucros e também como organizar melhor as coisas na loja.

 

Ravi e Sitara decidiram contratar mais uma pessoa para trabalhar na loja

 

 A única pessoa que apareceu para tentar conseguir o emprego foi uma mulher viúva da “casta dos Dalits” [1]···. Ravi e Sitara viam o sistema de castas como uma coisa ruim. Após ouvir dos grandes Devas que todos os seres eram iguais, achavam definitivamente que as castas deveriam acabar...

Com esse pensamento eles contrataram a Dalit Aditi.


Aditi era uma mulher boa e humilde. Era viúva e tinha uma filha linda da mesma idade de Manish.

O nome da menina era Chandra[2].

Logo de cara, Manish e a menina viraram amigos inseparáveis e sempre andavam de mãos dadas... 

O tempo passou e as coisas ficaram ruins.

 

Boa parte da cidade achou que Ravi e Sitara haviam enlouquecido por contratar uma Dalit e pararam de ir á loja comprar tecidos.

Ravi e sua esposa não se abalaram e todos os dias abriam a loja mesmo sabendo que ninguém entraria.

 

Vendo isso, Aditi foi até Ravi e disse:

- Senhor, devo ir embora...

- Não quero que o Senhor e sua esposa sofram por nossa causa...

- Não é justo o Senhor pagar dessa forma por tentar me ajudar...

 

Ravi olhou fundo nos olhos de Aditi e disse:

- Minha irmã... Não é você quem faz essas coisas ruins, e sim, a cegueira de nossos irmãos que não a veem como igual...

- Não permitirei que partas, por isso, fique junto a mim e minha família...

- Se tivermos que fechar a loja por isso, fecharemos juntos minha irmã...  

 

Então, Ravi abraçou Aditi como se ela também fosse sua filha...

 

Sitara que estava próximo ouvindo a conversa junto a Manish, disse ao menino:

- Veja meu filho... Esse é seu pai... O mais sábio homem que conheci e o mais doce homem da Terra...

- Seja como ele meu filho, pois seu pai é um exemplo a ser seguido...

 

Manish que já amava muito o pai, agora via nele um símbolo...

Um herói a ser seguido...

 

Naquela noite, Manish deitou-se e fez seus mantras. Pediu ao Maha Deva que ajudasse seu pai que era um homem bom e não devia sofrer por fazer o bem.

No dia seguinte, ao abrir a loja, Ravi deparou-se com dois homens em frente á loja.

Esses homens não tinham “cara de coisa boa”, mas Ravi, que não era de ter preconceitos, falou a eles:

 Os senhores precisam de algo?

 

 O homem que tinha a pele mais escura falou:

- Somos Asuras, os odiados. Os homens nos detestam e nos taxam de inimigos dos Devas.

 

 O outro Asura que tinha uma bela barba negra e porte de rei falou também:

- Ravi, queremos comprar tecidos, mas por certo tu não venderás para nós, pois somos Asuras...

 

Ravi os olhou e disse na maior calma:

- Asuras são manifestações de Brahman, portanto, são meus irmãos também.

- Os três grandes Devas me ensinaram pessoalmente, nessa loja, que todos os seres devem ser amados e respeitados não importando o nome ou título que carreguem... Portanto, meus irmãos, entrem e comprem o que quiser.

 

Os dois Asuras riram e falaram juntos:

- Tu és muito sábio Ravi, compraremos hoje em tua loja...

 

Manish viu tudo o que ocorreu e ficou confuso, afinal ele sempre ouvira no templo que os Asuras eram inimigos de Shiva.

Como ele pediu ajuda a Shiva, não entendeu porque foram Asuras que vieram ajudar...

Ele sentiu que Shiva não o tinha ouvido, mas ficou feliz, pois os Asuras compraram praticamente tudo que havia na loja incluindo o estoque.

 

Com isso, seu pai pôde respirar aliviado por um tempo sem precisar fechar a loja.

 

As pessoas da cidade, ao verem os Asuras compraram na loja quase tudo e vendo que eles tinham porte pensaram:

 -“Apesar de tudo Ravi era um grande homem e sua loja tinha os melhores tecidos da região”

 

Com isso, voltaram a ir á loja para comprar. Dessa forma, Ravi voltou a funcionar muito bem e ninguém mais ligava se Aditi era Dalit ou não. Todos a tratavam como igual...

 

Os dias passaram.

 

Manish apesar de ter apenas oito anos, ficou com dúvidas acerca da ajuda dos Asuras.

Essa dúvida surgiu porque já fazia um ano que Ravi todos os dias mandava Manish para o templo estudar os textos sagrados com seu irmão mais novo, o brâmane[3] Ragi.

 

Ravi, com isso, queria que seu filho fosse bem mais educado que ele. Também queria que ele fosse grande conhecedor dos textos sagrados.

Apesar de achar que estava fazendo o melhor para o filho, essas idas ao templo mais faziam mal a Manish, do que o bom.

 

Por um fato bem simples:

- Apesar de parecer que Ragi amava muito o irmão mais velho, ele nunca concordou com as atitudes do irmão. Ele sempre falava ao jovem Manish que seu pai agia de forma incorreta em adoração aos Devas.

Ele dizia que o pai era um bom homem, mas um péssimo fiel.

 

Isso, sempre incomodava o menino, mas ele não contava aos pais, pois não queria que ele sofresse...

  

Com o tempo, o jovem Manish se via entre:

O que o pai fazia e falava e

O que o tio lhe ensinava

 Isso mentalmente lhe fazia muito mal...

 

Um dia, saindo do templo, já com nove anos de idade, Manish viu sua amiga amada Chandra, e foi abraça-la.

 

Seu tio viu isso, foi até o menino, o puxou e disse:

- Não toque a impura, meu sobrinho...

(arrastou o menino para dentro do templo e começou a falar dos Dalits).

 

Manish ficou muito nervoso e disse:

- Nunca mais voltarei a esse templo, pois amo Chandra.

- Se os Devas não gostarem disso, eles não são bons e sim, maus...

 

O tio, com um olhar matador olhou e sobrinho e lhe falou algumas palavras que perseguiram Manish por boa parte de sua vida:

- Menino mau...

- Você será punido pelos Devas por ser insolente...

- Você é muito parecido com seu pai, aquele deturpador[4] de coisas sagradas...

 

O menino ficou tão furioso que derrubou o tio no chão, saiu correndo do templo e foi chorar no meio da floresta...

Lá, ele ficou até a noite, sozinho, chorando... Até que seus pais que já o procuravam há horas, o encontraram.

 

Ravi perguntou ao filho o que tinha acontecido.

O menino apenas revelou que não voltaria mais ao templo...

 

A família voltou para casa e Manish nada disse.

Ravi disse a Sitara que iria ao templo falar com Ragi para saber o que aconteceu.

 

No dia seguinte, logo cedo, Ravi foi ao templo.

Retornou duas horas depois, entrou na loja, foi até uma cadeira e sentou-se.

Sitara, ao ver o marido, percebeu que ele estava passando mal e foi acudi-lo.

Ravi nada disse sobre o que havia acontecido no templo.

 

Apenas falou:

- Nenhum de nós voltará ao templo minha esposa...

- Aquele não é mais um lugar sagrado...

 

Sitara sem saber o que dizer concordou e levou o marido para casa e deixou a loja com Aditi.

 

No mesmo dia, Manish estava sentado em frente á loja dos pais brincando com Chandra quando cinco garotos vieram e começaram a caçoar de sua amiga.

Entre os insultos que eles disseram estava coisas como:

Sujinha

Filha de impuros

E ralé

 

Chandra começou a chorar copiosamente. Seus lindos olhos castanhos pareciam duas fontes de dor e tristeza...

 Manish, que adorava Chandra, ficou muito nervoso. Levantou-se e gritou com os meninos:

- Vão embora, seus idiotas...

 

Manish pegou pedras no chão e jogou neles. A pedra acertou no rosto do garoto que caiu ao chão chorando. Ao ver isso, os outros quatro garotos foram para cima de Manish que ficou parado e não fugiu.

 

Os quatro o cercaram e começaram a lhe dar tapas na cara.

 

Manish estava muito assustado, pois os garotos além de estar em maior número eram maiores que ele mesmo. Assim, ele cerrou os punhos e manteve-se firme. Após levar alguns tapas, Manish muito nervoso tentou reagir, mas foi empurrado e caiu.

 

 Nesse momento, um dos garotos foi em direção a Chandra e disse:

- A culpa é sua Dalit...

- Agora você também vai apanhar...

 Ao ouvir isso, o coração de Manish disparou...

 

Tomado por uma força enorme, ele rapidamente levantou-se e correu em direção ao garoto que estava pronto a bater em Chandra.

Com muita habilidade, Manish segurou o braço do garoto que se assustou, pois a força na mão de Manish era tão grande que ele não conseguia se soltar...

Rapidamente os outros garotos correram para bater em Manish.

Mas... O improvável aconteceu...

Com grande força e agilidade, o pequeno derrubou todos os garotos.

A força que Manish possuía era tão grande que um homem que passava pela rua viu a situação e tentou para-lo, mas foi derrubado por ele.

Dentro da loja, Ravi ouviu gritos e foi ver o que era.

Ao sair, deparou-se com Manish segurando um dos garotos no ar pelo pescoço.

 

Ravi então gritou:

- Solte ele, meu filho...

Manish, ao ouvir o pai gritando, soltou o menino que caiu ao chão chorando...

Os outros meninos então vieram, pegaram-no e fugiram...

 

Ravi perguntou o que estava acontecendo e o menino explicou tudo ao pai.

Ravi pegou Chandra no colo, levou para dentro de casa e falou para Manish entrar também.

 

Ao consolar a garota, Ravi falou o seguinte á Manish:

- Meu filho, entendo sua raiva...

- Mas não se vence a ignorância alheia com gritos e socos...

- Ao fazer isso, você dá mais motivos para que eles continuem a seguir na cegueira...

- A única forma de mudar as coisas é lutar para que aprendam através do diálogo e não da agressão...

 

Ravi parou de falar por alguns segundos, depois prosseguiu:

- Meu filho... Chame sua mãe e depois vá com Chandra ficar com Aditi...

 

Manish fez o que pai o ordenou.

 

Sitara chegou, viu que os olhos de Ravi estavam vermelhos, cheios de lágrimas e percebeu que algo estava muito errado.

 Ravi então, disse á esposa:

- Meu amor, meu grande e único amor...

- Meu peito dói...

- Acho que está chegando a minha hora de ir para junto dos Devas...

 

Sitara com muita dor ajoelhou-se, deitou a cabeça sobre as pernas do marido e disse:

- Não me fale isso, meu amor...

- O que seria de mim sem você?

 

Ravi tentou falar, mas não conseguiu. E desmaiou.

Sitara gritou desesperada chamando Aditi e pediu-lhe que chamasse o mestre em Ayurveda.[5]

Quando Agnaya chegou, viu o paciente, avaliou todos os aspectos físicos e energéticos.

 

Depois chamou Sitara e disse:

- Já não posso fazer mais nada minha amiga...

- Seu marido está se soltando da forma material para se tornar uno com Atman[6]...

- Deveis pois, se preparar, pois ele em breve vai desencarnar...

 

Sitara ficou desolada.

 

Manish, que ouvia tudo escondido atrás das porta, correu para o quintal. Embaixo de uma árvore, pediu á Shiva com todo coração que não deixasse seu pai sofrer e o curasse.


Cinco dias se passaram após a visita de Agnaya.

 

 Ravi, que parecia melhor, levantou-se da cama, mesmo com Sitara tentando impedi-lo, foi até a loja, abraçou Aditi, e disse:

- Minha filha...cuide bem da loja e de sua filha pois ela será uma pessoa muito importante na vida de meu filho...

- Saiba que nunca me arrependi de tê-la como funcionária e amiga...

 

Depois, saiu da loja e, vendo Manish sentado com Chandra, falou:

- Crianças, venha até aqui...

 

Manish ao ver o pai, correu e abraçou-o. 

Chandra deu a mão a Ravi e eles foram passear.

Ravi passeou com as crianças pelas ruas de Varanasi e um a um dos amigos ele foi cumprimentando.

 

Foram até uma gruta que havia perto da cidade.

Lá, Ravi disse ás crianças que aquele era um local sagrado pois dentro da caverna o Senhor Shiva passou anos meditando pela perda de Sati e na mesma caverna, Parvati, outra forma de Sati, o reconquistou.

 

Depois, olhou para Manish e disse:

- Filho, como o Grande Maha Deva, eu tenho um grande e único amor.

- Sitara sempre foi e será minha esposa amada...

- Filho, prometa-me que cuidará bem de sua mãe o dia em que não estiver mais com vocês...

 

O menino respondeu que sim, ele cuidaria da mãe.

 E disse:

- Pai, o Senhor nunca deixará de estar aqui, o Senhor melhorou...

 

Ravi sorriu e falou a Chandra:

- Não sou seu pai nessa vida mas sinto como se tu fosse minha filha...

- Um dia, tu realmente serás minha filha, mas, nesse dia ,eu já não estarei mais aqui...

 

Após essas palavras, Ravi voltou com o meninos á loja e os deixou com Aditi.

 

 Logo em seguida foi falar com Sitara. Ao vê-la, disse:

- Sitara, a última coisa que gostaria de fazer na vida era te ver e abraça-la.

 

Sitara já sabia que seu marido estava se despedindo, nisso, abraçou-o e disse:

- Sua, sempre sua, meu amor...

- Eternamente te amarei...

 

Essas foram às últimas palavras que o nobre Ravi ouviu...

 O bom homem morreu nos braços de sua amada, como desejava.


Naquele dia, Varanasi inteira chorou, pois o melhor habitante da cidade partira pra nunca mais voltar...




[1] Considerada a casta mais baixa na sociedade de castas indiana
[2] Significado do nome Chandra: LUA.
[3] Mais elevada casta da na Índia, são os sacerdotes conhecedores dos textos sagrados e dos trabalhos em templo.
[4] Desfigurar; desvirtuar; malsinar.
[5] Nome dado ao conhecimento médico desenvolvido na Índia há cerca de sete mil anos, o que faz dela um dos mais antigos sistemas medicinais da humanidade. Ayurveda significa, em sânscrito, Ciência (veda) da vida (ayur) Agnaya.
[6] Atman ou Atma Palavra em Sânscrito que significa alma ou sopro vital. Na teosofia representa a Mônada, o 7º princípio na constituição setenária do Homem, o mais elevado princípio do ser humano.