quinta-feira, 18 de novembro de 2010

PRATO RASO DE SOPA FRIA



Ele se chamava Zé.

Não que seu nome fosse esse, mas era assim que aquele homem de vida dura era chamado.
Para uns, ele era o Zé ninguém. Para outros, ele era o Zé da praça, sem contar os infames nomes que lhe eram colocados de tempos em tempos:
Zé sujo, Zé maloqueiro, etc.
Mas, apenas um desses muitos nomes Zé gostava.

Era: Zé dos cães.

Zé tinha um nome, o esquecera ou talvez nunca dissesse, pois ninguém estava interessado em saber seu nome verdadeiro.


Zé era um homem que vivia nas ruas.

Seu teto eram as marquises das pontes, as árvores das praças ou até mesmo o céu estrelado.
A rua era sua casa. Seu lar de dificuldades...
Ele era um mendigo, maltrapilho, um esquecido...
Mas Zé, como qualquer um de nós era humano... ao menos ele se achava isso... Mesmo nas horas que era tratado como lixo por sua condição...

Zé nunca deixou de ser humano para virar bicho ou fera, mesmo assim muitas vezes se sentiu mal por ser mal visto.


Zé era visto como um lixo humano...

As pessoas o evitavam e atravessavam a rua ao vê-lo...
Ele sempre era barrado nas portas de bares, restaurantes e estabelecimentos comerciais.
Não que ele estivesse imundo quando tentava entrar, mas sabem como é ter um maltrapilho por perto...
(É ruim para os negócios...) ou (pode espantar os clientes...)

Os clientes que odeiam ver gente suja e ver a pobreza de perto...

Zé provavelmente não teria dinheiro para pagar sequer a água que lá era vendida...
Água essa que o mundo nos dá de graça e que muita gente ganha rios de dinheiro com ela...

Mas Zé não se preocupava muito com isso. Ele tinha outros problemas para pensar...
Onde ficar no inverno...
Época do ano terrível para quem tem a rua como casa...
Ele poderia ficar em algum albergue, mas a única vez que fez isso, além de ser humilhado foi roubado...


Sendo assim, Zé decidiu nunca mais ficar em um albergue.


Zé, ao longo de sua vida nas ruas, ou melhor, dizendo, ao longo de sua luta pela sobrevivência nas ruas, viu muitos amigos e companheiro de miséria morrerem de frio.

Na mente de Zé, nessa época, sempre vinha à imagem de um velho amigo que em uma noite fria de inverno morreu no desamparo...
Esse amigo sofreu muito aquela noite... A morte veio aos poucos na forma de hipotermia.
Ao amanhecer, foi Zé quem achou o amigo morto com os olhos abertos e seu corpo gelado...

(Essa imagem seguiria Zé para todo a sua vida)

Zé, por vezes, na época do inverno, se juntava a outros humanos esquecidos como ele... assim dormiam juntos a fim de um aquecer o outro.

Uma noite, quando Zé dormia no centro da cidade junto a seus irmão de rua, um carro se aproximou. Dentro do veículo estavam quatro homens encapuzados carregando garrafas de álcool.

Esses homens riam enquanto jogavam álcool em Zé e seus irmãos de rua.
Logo depois, acenderam um fósforo e jogaram neles.
Zé conseguiu correr antes que o fogo pegasse, mas muitos irmãos não tiveram tanta sorte...

E começaram a queimar...

Os homens encapuzados fugiram e deixaram para trás a tragédia que iniciaram...

Zé tentou ajudar os irmãos de rua, mas um ele não conseguiu ajudar...
Este caiu agonizando com queimaduras de terceiro grau e morreu horas depois em um hospital público... Outros, ficaram marcados pela maldade humana para sempre...


Zé não fora queimado, mas seu trauma seria eterno...


Com poucas opções, Zé tentava achar um lugar para ficar, mas os lugares bons para um cidadão da rua ficar muitas vezes já estavam ocupados.
As melhores opções eram os vãos das pontes, entradas, saídas de bueiros já não utilizados e as praças...
Até a chegada do o inverno era preciso juntar jornal.

O jornal no inverno tinha muitas utilidades.

Servia para fazer fogo e se aquecer...
Servia para forrar a parte interna das roupas rasgadas e sujas...
Zé sabia que amassar cem jornais e botar dentro da roupa isolava o corpo da friagem, já os papelões que durante o resto ano ele recolhia para vender e ganhar um dinheiro nessa época do ano virava cabana.


Muitas vezes no inverno, almas boas vinham às ruas distribuir sopas quentes.
Sopa essa que para Zé era mais que uma refeição, era na verdade um sopro de vida.


Zé temia o inverno, pois um homem sem teto e com dificuldades de conseguir alimento facilmente adoeceria nessa época, mas Zé sempre dava um jeito de sobreviver.

Era no inverno que se podia ver Zé olhando aquela foto já amassada e rasgada nas pontas...
Era a foto da família de Zé...
Mulher e filhos, pouco se sabe deles...
Não sabemos se ele os abandonou ou se eles o abandonaram...
Não sabemos se estavam vivos ou mortos...
Zé nunca falava deles, apenas olhava a foto e deixava correr lágrimas em seu velho rosto endurecido pelas dores da vida na rua.

Já no verão, os problemas eram outros...
Calor demais, chuvas, falta de água para banho e beber.

A água para beber talvez fosse o mais fácil de conseguir, mas muitas vezes até mesmo a água, elemento básico da vida, era difícil de conseguir.

Para aliviar o calor, Zé muitas vezes se banhava nos chafarizes e lagos das praças.
Muitas vezes isso lhe causava problemas.
As autoridades que nunca fizeram nada por Zé o expulsavam desse locais às vezes agressivamente...

Já as chuvas eram um perigo constante, pois poderia levar embora nas milhares de enchentes as poucas coisas de Zé ou até mesmo levá-lo para alguma galeria suja que seria o sepulcro de nosso irmão das ruas.

As chuvas também poderiam deixá-lo doente e ficar doente na rua, na maioria das vezes, era sentença de morte.


Zé trabalhava.


Nunca admitiu pedir esmola.
Às vezes pedia comida, mas nunca dinheiro...
Ele catava latinhas, papelão e os vendia para reciclagem.

Zé teve um carrinho para carregar as coisas, mas certa vez uma enchente levou o carinho e o destruiu.

Desde então, Zé carregava kilos e kilos de latinhas e papelão nas costas.

Ao longo de sua vida na rua consegui ter alguns amigos fiéis que dariam a vida por ele: eram os cães vira-lata.
Nesses, Zé confiava e com eles ele dividia tudo.
Metade do que conseguia de alimento ele dava a seus amigos, a outra metade ele comia.

Os cães protegiam Zé de tudo e todos...

Antes dos cães andarem com Zé, ele sempre era vítima de brincadeiras e agressões de pessoas que só passam a vida para fazer o mal aos outros ou simplesmente descontam sua própria imbecilidade nos outros, mas os cães acabaram com isso.
Quem tentasse fazer mal a Zé encontraria uma barreira fiel feita pelos cães, que eram mais humanos que muita gente...

Foi da fidelidade que Zé tinha pelos cães, e da fidelidade que cães tinham para com o Zé que surgiu o nome Zé dos cães.

Zé trabalhava o dia inteiro para só a noite comer...

Às vezes, donos de bares e restaurantes lhe davam comida e Zé aceitava.
Ele sempre agradecia dizendo:
-Que deus te dê em dobro.

Havia épocas que Zé não conseguia latinhas ou papelão, ou sequer um pão velho duro para comer com ninguém...
Nesses tempos, ele revirava os lixos da cidade.
De lá, tirava comidas podres e fédidas, pois nenhum ser humano deveria comê-la...
Contudo, para Zé e seus cães isso era um banquete em épocas de fome extrema...

Por vezes, as pessoas passavam e se enojavam ao ver Zé comendo coisas tiradas do lixo, mas nenhum deles se propunha lhe oferecer um pão ou um simples prato de comida...

É muito fácil julgar as pessoas quando não se está na pele delas, mas Zé não ligava para os olhares de condenação.

Na verdade, ele nem percebia...
A fome era muito maior do que ficar se preocupando com que o outros achavam dele...


A fome era uma constante companheira de Zé.


Em um verão, Zé estava andando pela cidade e o tempo fechou.
A tempestade veio e ele não teve como se proteger se molhou muito...

Na noite daquele dia, Zé começou a sentir que estava adoecendo
Ele então foi para uma praça e lá montou seu pequeno e humilde acampamento...

A doença estava piorando... E isso era péssimo.
Zé estava sem comer há dois dias e ele foi ficando debilitado...


Ele tentava sair para trabalhar, mas caia no chão e ficava um tempo lá caído...

Quem passava comentava:

-Bêbado vagabundo, encheu a cara e agora está caído...!
-Vagabundo... Não trabalha e ainda fica ai caído atrapalhando o caminho dos outros!

Muitos eram os comentários das pessoas ao vê-lo caído, mas nenhum era de apoio.
Nenhum dos que falavam sabia nada da vida dura que Zé levava e nenhum tentou ajudá-lo...
Zé levantou-se com dificuldades e voltou para a praça...
Apenas cães o olhavam e tentavam ajudar, mas Zé estava cada vez mais doente...

A gripe estava passando, mas a fome não...

Zé estava morrendo de fome e ninguém que passava perto notava isso...

A verdade é que ninguém sequer notava Zé ali...

Ele era invisível para os olhos das pessoas egoístas e que não estavam nem aí para ninguém além de si mesmas...

Quando Zé precisou de um simples olhar humano de preocupação de alguém, todos negaram.
Zé sento-se com muita dificuldade e olhou para o céu...

Nesse momento, sua respiração parou.

Zé morreu ali. Sozinho e sem companhia humana.

Os únicos seres que estavam lá sofrendo e fazendo companhia eram os cães.
Esses foram os únicos amigos que ficaram com Zé até o seu último suspiro.


Demorou algum tempo para alguém notar que Zé morrera, mas só dessa forma Zé foi notado...

Quem o olhava com olhar de condenação agora o olhava com olhar de pena.

Os cães latiam para essas pessoas como se falassem:
- Hipócritas, desumanos...
- Só agora que nosso Zé se foi vocês vem com essa humanidade...

Zé foi enterrado em uma cova rasa de indigente.
O numero da cova era 1678.
Este foi o único número que Zé, um lutador, representou para a sociedade que o matou...

E naquele momento antes de morrer Zé olhou para o céus e pensou:
-Eu agora só queria “UM PRATO RASO DE SOPA FRIA”

Zé morreu ?

Talvez não...
Todos nós somos um Zé em potencial...
Todos, um dia, podemos passar pelo que Zé passou...

Então, meus amigos, dêem valor ás suas vidas para que no final delas vocês não queiram apenas...
um PRATO RASO DE SOPA FRIA...